Fevereiro de 1969. Em Alagoa Grande, no interior da Paraíba, cinco garotos saem para uma caçada e acabam envolvidos em um crime inadvertido. Nos dias que seguem, eles devem lidar com as consequências do fato, como se o horror de repente os obrigasse a amadurecer, revelando a cada um o seu lugar no mundo, os privilégios da justiça, a desgraça de ser sempre condenado.
Quarenta anos depois, a cidade conhece nova tragédia: a Barragem de Camará, construída para mitigar os efeitos da seca, estoura no meio da noite e inunda casas e engenhos, deixando para trás um lastro de morte que marcaria todos ali para sempre.
Primeiro romance de Marcel Vieira, Camaradas é um livro que, transitando entre ficção e realidade, aposta na fabulação da memória como forma de encenar a dramaturgia do poder no Brasil.
(Sinopse original de Camaradas)
1 – Seu livro começa nos momentos que antecedem um crime brutal cometido por cinco adolescentes. Detalhes desse crime são revelados aos poucos na narrativa, embora as circunstâncias e motivações de cada um permaneçam até certo ponto obscuras. Como você enxerga a ambiguidade desses jovens aparentemente normais, porém capazes de cometer um ato tão monstruoso?
Meu objetivo era construir no livro uma dinâmica em que as motivações dos personagens não fossem articuladas por lógicas mais básicas de causalidade (como a vingança ou a legítima defesa), mas por uma força motriz estruturante, um zeitgeist de violência que constitui as relações dos sujeitos entre si e deles com suas próprias subjetividades. Por isso, tornar mais obscuras as circunstâncias do crime visava dar aos leitores um olhar sempre tangencial aos eventos, de modo que as situações não aparecessem com uma clareza totalizante, mas a partir de múltiplos fragmentos e pontos de vista.
Interessava, portanto, construir essa ética da violência masculina que alicerça a sociabilidade dessa pequena cidade no interior da Paraíba, menos como um valor e mais como uma pulsão, um arrebatamento ao mesmo tempo desarrazoado e consciente. Pois é assim, creio, que o fascismo se mistura ao cimento social e se torna “normalizado”, como uma resposta tão habitual aos conflitos que passa, com facilidade, a negar a sua própria natureza de horror. Isso também explica o interesse do livro na justiça, e não apenas nas leis e no aparato burocrático do poder judiciário. Porque a impossibilidade de um julgamento justo é uma tragédia, uma tragédia que,articulada com as demais violências do cotidiano – seja um crime inesperado ou a inundação de uma barragem rompida –, nos deixa reféns desse fascismo cada vez mais fundo na alma do país.
2 – Em Camaradas, violência, injustiça e culpa irrompem como conseqüências da opressão, seja através da corrupção do poder público (personagem do delegado) ou de uma hierarquia velada nos grupos sociais, como entre os próprios camaradas do título. De que forma essas relações de poder são determinantes na sua história?
Como falei, o livro lida com uma ideia de violência estruturante, que se vê na relação entre os personagens (os garotos diante do crime, os adultos diante das sequelas, os políticos diante das oportunidades) . Mas não digo que as relações de poder são determinantes, pois elas não definem como os indivíduos vivem e como tomam decisões. Ou seja, não acredito em personagens reféns das circunstâncias. Acredito em escolhas, e em escolhas que tem consequências. Estamos falando de cinco garotos que, no meio de uma caçada, acabam matando e esquartejando uma pessoa que encontram no caminho. E fazem isso porque querem, porque, sem que a gente compreenda bem o motivo, havia um desejo, uma pulsão de morte.
Tanto é assim que o próprio livro, dentro da lógica metatextual criada na segunda parte, só existe pelo desejo consciente de uma personagem em contar essa história, em recorrer inclusive à ficção para dar conta de uma experiência que ela, de fato, nunca poderá compilar plenamente. E é aí também que entra a culpa, pois ela é uma força autopunitiva, um mecanismo da consciência para controlar nossos ímpetos. Rubens aguenta a culpa por mais de 30 anos, mas chega um ponto em que ele precisa se redimir, mesmo que o julgamento e a punição já sejam subsumidos. O castigo deve caber no crime.
3 – A narradora busca trazer à tona um passado de sua família que todos quiseram enterrar. No entanto, o que começa como uma investigação para desvendar fatos e paradeiros, acaba se assumindo, em grande parte, como ficção frente à impossibilidade da descoberta. Qual a importância, em sua obra, desse embate entre verdade e fabulação, objetividade e memória?
Esse é o grande tema da literatura contemporânea, acredito. A ficção tem hoje uma demanda por realismo que é diferente da segunda metade do século XIX, e da narrativa neorrealista dos anos 1930-50. Não basta, para construir um “efeito de real”, descrever detalhadamente o ambiente e as relações sociais de uma época. Hoje, com o intenso atravessamento de factual e ficcional, de vida e entretenimento, tornou-se comum as performances de nossa vida cotidiana nas telas midiáticas, forçando uma aproximação do real com o testemunhal, de modo que a Verdade, num sentido filosófico mais amplo, predomina mais como relato que como experiência.
A literatura – e a arte como um todo – compreendeu esses processos hoje corriqueiros de exposição do eu e buscou, a seu modo, tensionar os limites que, historicamente, separavam os discursos factuais dos discursos ficcionais. Seja pelo meio da autoficção (que me interessa menos), seja pela redução estrutural de processos sociais (que eu tinha no horizonte), esse é um elemento de distinção da contemporaneidade literária. Assim, fui atrás de contar uma história que aconteceu (a queda da Barragem de Camará), muito embora me ativesse menos aos eventos realmente ocorridos, e mais à dificuldade – ou impossibilidade – de contar esses eventos de modo justo.
4 – Sua escrita minuciosa consegue conciliar violência crua e lirismo, contendo em si uma força imagética inegável. Como roteirista e professor de cinema, conte-nos um pouco de que forma essa experiência te auxilia como escritor e quais as suas influências na literatura.
Tanto o cinema, quanto a televisão, hoje com a sofisticação estilística das narrativas seriadas, são muito fortes na minha experiência como escritor. O grande segredo dessa dramaturgia audiovisual, para mim, é a consciência daquilo que precisa ser mostrado e do que tem que ser escondido, de modo que este, quando enfim aparece, reverbera apenas nas ações e escolhas dos personagens. Isso porque a câmera tem a capacidade de limitar a cena nas dimensões do enquadramento e, ao mesmo tempo, construir um mundo ficcional que transcende aos limites da tela. Diretores que se aproveitam disso para construir o seu estilo (desde os mais clássicos, como Jean Renoir e Max Ophuls, até contemporâneos como Abbas Kiarostami, HouHsiao-hsien e Michael Haneke), me interessam profundamente.
No entanto, o romance é uma arte que se abre a essas comparações com o cinema, mas que também pode manusear o tempo e o foco narrativo de um jeito muito particular. Na literatura, minhas influências mais fortes vão de autores mais realistas, como Graciliano Ramos e José Lins do Rego (escritores que investigaram também as lógicas de violência e opressão estruturais no Nordeste), até aqueles que radicalizam a manipulação do tempo e do ponto de vista para observar os microdetalhes essenciais na criação da atmosfera de uma cena, como William Faulkner e Juan José Saer. Atualmente, por exemplo, estou trabalhando num segundo romance que retoma um período singular da história do Nordeste brasileiro, o governo holandês nos anos 1630-50, e o articula com os anos que precedem e procedem o segundo governo Dilma. Não se trata de uma comparação vinculante. Mas de perceber como, na nossa formação como país, o poder e a justiça foram e são circunstâncias modeláveis que, reféns dos interesses do capitalismo internacional, reforçam nossa condição periférica.
Saiba mais sobre o livro Camaradas e leia um trecho da obra no site da Editora Patuá.
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