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O destino da garoupa (conto)

Atualizado: 15 de mai. de 2019


Conto do escritor Bruno Flores, O destino da Garoupa

Essa é a história de uma garoupa-verdadeira, nome de batismo Epinephelus marginatus, que vivia aprisionada a uma nota de cem reais. Na Casa da Moeda, onde nascera, enturmara-se com a tartaruga-de-pente, a garça-branca-grande, a arara-vermelha, o mico-leão-dourado e a onça-pintada. Lá soube que seu destino seria transitar de mão em mão, sem apegos ou amparos, pelo resto de seus dias. De nada adiantava sonhar com a savana, a selva, os céus ou, no seu caso, a libertação pelos mares. Aquele papel levemente brilhoso, duro e fedorento do Banco Central a confinaria para sempre. Nesta fauna inusitada, nossa garoupa era a mais rara, a mais valiosa, e por isso costumava ser mais preservada nas bolsas e carteiras. Não à toa, permanecia há quase duas semanas com seu primeiro e único dono, um playboy de vinte e cinco anos chamado Rodolfo.

Agora, dobrada na carteira Dolce & Gabbana de Rodolfo, entre uma onça e um mico-leão, a garoupa se empenhava em imaginar a refrescante imensidão do oceano, um banquete de lagostas, camarões e moluscos nos fundos rochosos...

Mas o batuque surdo da música eletrônica estraçalhou sua fantasia. Do lado de fora, o ambiente invisível à garoupa era a pista de dança armada na cobertura dos pais de Rodolfo. Luzes coloridas cintilavam sem lógica do teto, revelando mulheres com vestidos colados ao corpo, dançando de olhos fechados, homens circulando com seus uísques e caipisaquês. Taças de champanhe eram erguidas com o cigarro entre os dedos, minúsculos pontos incandescentes pairando no ar como vagalumes embriagados. No canto, um DJ com boné pra trás, cordão de prata e camisa regata expondo no braço uma enorme tatuagem tribal orquestrava a euforia com um trance psicodélico.

Rodolfo atravessou a pista com sua camisa desabotoada, agarrou Andressa por trás e deu uma mordidinha em seu ouvido. Ela gargalhou, quase caindo de costas. O casal esquivou-se até a varanda, seguido pelos amigos de Rodolfo.

Uma brisa agradável vinha do oceano, agora resumido a linhas de espuma branca no breu da madrugada.

⸺ Vai nevar, Rodolfinho?

Rodolfo tirou a nota azul da carteira e a esticou para mostrar aos amigos: de um lado, a efígie simbólica da República, do outro, nossa garoupa-verdadeira, em seu falso nado, com falsos corais ao fundo.

⸺ Hoje neva até no mar.

Tirou um miniplástico do bolso e derramou o pozinho branco sobre o parapeito. Preparou a linha com o cartão de crédito Prime, enrolou a nota e aspirou tudo, sacudindo em seguida a cabeça feito um cachorro com otite.

Amigos se ouriçavam como crianças diante de uma carrocinha de sorvete, enquanto Andressa, distraída, prendia o cabelo num rabo-de-cavalo, exibindo a palavra “Liberdade” tatuada em suas costas.

Foi então que um vento forte bateu de súbito, tombou uma cadeira, esvoaçaram-se os cabelos e a garoupa escapuliu da varanda.

⸺ Puta que o pariu!

A nota se abriu como se criasse asas e a garoupa sentiu-se leve, balançando ao sabor do vento, feito suas colegas arara e garça. Por um instante, a luz branca dos postes da orla parecia um farol a guiá-la rumo ao seu habitat. Mas a esperança de transpor a fronteira com o oceano logo veio abaixo quando uma brusca mudança de vento a empurrou no sentido contrário. Veloz e sem freios, seguiu pelo labirinto de edifícios brilhantes na direção do centro da cidade, até perder os sentidos ainda no ar.

Despertou com o primeiro facho de luz esverdeando seu azul-piscina. Estava encostada no meio fio, ao lado de uma latinha de guaraná amassada. Duas pernas atravessaram a rua, se agacharam ao seu lado, e a garoupa sentiu mãos ásperas, cheias de calos. A fungada provocou cócegas no contato com o bigode.

⸺ Acordei com a bunda pra lua!

Inserida de qualquer maneira num bolso suado e encardido, a garoupa descobriria mais tarde que seu novo dono era o estivador Eusébio, um bocado satisfeito por finalmente poder quitar com Firmino, seu agiota. Faltavam justamente cem reais. Não gostava de Firmino, muito menos de dever dinheiro a ele. Era a primeira vez que faziam negócio e não pretendia que houvesse uma segunda, o que aumentava sua satisfação ao liquidar de vez o assunto.

Era um domingo e o escritório de Firmino estaria fechado, mas Eusébio tinha seu turno a cumprir. De oito às cinco, operou guinchos, tratores e empilhadeiras, organizando cargas no convés de um navio que zarparia no dia seguinte. No intervalo do almoço, gargalhou mais do que seus colegas quando contou a última piada do Joãozinho, que recebera do cunhado pelo zap.

Eusébio voltou contente para casa ao escurecer, mas assim que girou a chave e abriu a porta, seu bom humor deu lugar à vertigem. Ali estava, em sua sala, o sujeito atarracado, de cabeça chata e bigodinho que mais parecia uma lagarta-de-fogo: Firmino.

Sua esposa Angélica veio da cozinha com expressão atarantada, esfregando as mãos no avental.

⸺ Querido, esse moço disse que te conhece, que tem um negócio com você.

Eusébio apertou a mão de Firmino sem dizer palavra. Como ousava vir até sua casa sem aviso, num domingo à noite, constrangendo sua esposa, invadindo sua privacidade! O cobrador não parecia incomodar-se com o silêncio, seu olhar passeando pelos poucos objetos de valor na sala: a antiga cadeira de balanço de jacarandá, herança da família de Angélica, a louça de porcelana chinesa que fora presente de casamento e a TV de plasma de cinquenta polegadas, financiada com o empréstimo do próprio Firmino, onde agora o Faustão anunciava aos berros a “Dança dos Famosos”, logo após os reclames do plim-plim.

⸺ Zébio, o moço tá esperan...

⸺ Sim, sim, já sei, pode voltar pro seu programa.

Angélica voltou desconfiada ao sofá, mas tão logo se postou na frente da TV, um olhar alienado, quase demente, instalou-se em seu rosto.

⸺ Vamos conversar na cozinha.

No espaço estreito entre a pia e o fogão, sob o cheiro inebriante de alho, Eusébio tirou a nota de cem do bolso, misturou ao restante do dinheiro, e chapou com força as cédulas na mão de Firmino. A garoupa se ressentiu por ser manuseada com tamanha rispidez, sobretudo quando inserida numa carteira sufocante com cheiro de couro velho, antes ocupada apenas por duas solitárias tartarugas-de-pente.

⸺ Tudo certo? Então vá com Deus...

Eusébio guiava o agiota bruscamente na direção da saída.

⸺ Ora, Eusébio. Não me leve a mal. Só vim porque tenho que buscar amanhã uma encomenda importante e precisava do dinheiro. Sabe como são essas coisas...

⸺ Sei sim, até logo.

A porta bateu com força atrás de Firmino.

Na manhã seguinte, o agiota se dirigiu até uma travessa do centro da cidade. Numa casa decrépita dos anos trinta, estava a tal “encomenda importante”: o vestido de casamento da esposa, que deixara aos cuidados de uma costureira. A dona do negócio era uma senhora gorda chamada Cleidir, de cabelos grisalhos, pele maltratada e um olhar astuto de quem se manteve ocupada a vida toda. Ela preenchia a caneta a nota de compra, sentada num banquinho que parecia frágil demais para sustentar seu peso.

⸺ Noventa e três reais.

Firmino fez uma careta, tirou a carteira do bolso e pagou com a garoupa, que buscava ainda se acostumar àquela vida errante. Cleidir arranhou a nota, levantou-a contra a luz e a largou dentro da bolsa, junto a um casaco velho, um celular, a última edição da revista Marie Claire e um cartão da Caixa Econômica. Tirou uma garça e uma tartaruga e as entregou a Firmino.

⸺ Sua senhora vai ficar bonitona com o vestido novo, viu? Garantido.

⸺ Com essa grana que tô pagando, é bom que fique mesmo.

Cleidir abriu um sorriso irônico escondendo os dentes, e Firmino achou por bem desfazer a má impressão.

⸺ É uma ocasião especial, essa... vinte e cinco anos de casados.

A costureira levantou a cabeça com olhos arregalados e bateu palmas.

⸺ Bodas de prata! Parabéns ao casal!

Ela ficou de pé e o agiota viu-se obrigado a envolver nos braços aquele monte de banha. O mundo era cheio de doidos. Uns abraçavam estranhos com um ânimo desatinado, como se fossem velhos amigos, outros lhes davam tiros de revolver sem motivo aparente. Pelo menos, Cleidir era do primeiro tipo.

A garoupa, por sua vez, ficou contente por não estar mais confinada a uma sufocante carteira, embora a bolsa de Cleidir cheirasse a esmalte e Leite de Rosas.

Mas o alívio durou pouco. Por volta do meio-dia, a garoupa ouvia o ruído do trânsito, quando a costureira enfiou a mão na bolsa, tirou uma gaivota e a pôs de volta. Depois fez o mesmo com duas araras e resmungou qualquer coisa, até enfim achar o que procurava: a onça.

⸺ Afff, finalmente!

Minutos depois ela mudou de ideia, devolveu a onça e pegou a garoupa, que trocou o ar abafado da bolsa pelo ar poluído da rua. Estava numa fila enorme na calçada, em frente a uma casa lotérica. Cleidir juntou as mãos em forma de reza, a garoupa espremida no meio, e rezou o Pai Nosso ao som de buzinas e freadas de ônibus.

Quando enfim chegou a sua vez, Cleidir entregou a garoupa, misturada a um monte de papel, ao homem atrás do balcão, um mulato jovem, de cabelos rastafari, vestindo a camisa do Barcelona.

O funcionário conferiu a quantidade de talões preenchidos e encarou Cleidir com espanto.

⸺ Tudo isso, dona?

⸺ É hômi, e vamo logo que eu tenho serviço me esperando!

⸺ Ô estresse...

Guardou a garoupa na gaveta do móvel à sua frente e tirou algumas tartarugas e garças de troco.

À noite, a garoupa foi bruscamente removida de um sonho agradável, em que nadava em alta velocidade por um mar azul-turquesa. O mulato que a guardara mais cedo a tirou da gaveta, a inseriu no bolso lateral da calça jeans surrada e saiu para a rua, fechando a casa lotérica. Na esquina, um amigo o esperava.

⸺ O Marcelo nem confere os ganhos do dia, então tá tranquilo. Depois dou um jeito de devolver.

O amigo se manteve em silêncio, e o mulato continuou.

⸺ É por uma boa causa. A Joaninha mal tem falado comigo, anda tristinha, mas esse presente vai dar um jeito.

A garoupa descobriu que seu novo dono a usaria para comprar o último lançamento da Barbie, que vinha com três bonecas, uma casa e tudo mais, para dar de presente à filha Joana em seu aniversário de cinco anos. Supostamente, todas as amiguinhas zombavam dela por não ter ainda a tal Barbie Real Casa, e ele, como pai, sentia-se no dever de impedir que a filha sofresse bullying.

Pararam em frente a um boteco, e o amigo enfim revelou sua voz:

⸺ Umazinha que ninguém é de ferro!

Sentaram na única mesa vazia da calçada e pediram uma Brahma. Em volta, dois sujeitos discutiam ferozmente o resultado do jogo do Vasco, um branquelo com óculos de armação grossa e camisa polo acariciava a mão de uma mulher grandona com seios de silicone e gogó saltando do pescoço, e um velho com cabelo desgrenhado e barba por fazer encarava vidrado o copo de cerveja. A garoupa passou a escutar as conversas entre o rastafari e seu amigo, que fluíam cada vez mais soltas e animadas. O carrinho desleal que o “babaca do Nelson” deu na pelada de domingo levou ao assunto da escalação do Tite pra Copa da Rússia, que levou à contusão do Neymar que quase o deixou de fora, que levou ao antigo vídeo da Bruna Marquezine rebolando até o chão, que levou ao dilema não resolvido de quem era a Panicat mais gostosa. De dentro do boteco, vibrava o som da extinta lambada: ♫ Chorando se foi quem um dia só me fez chorar / Chorando estará, ao lembrar de um amor / Que um dia não soube cuidar ... A garoupa tentava cochilar, mas era difícil.

Ouviu então o mulato pedir a conta (Fecha aí pra gente, Paraíba!), foi retirada do bolso da calça e jogada aberta sobre a mesa do boteco, ao lado de incontáveis garrafas de cerveja vazias.

Era só o que faltava. Deixava de fazer a alegria de uma criança para financiar a bebedeira de um pai irresponsável.

Mas o acaso novamente jogou ao seu favor quando um caminhão de lixo passou ao lado da mesa em alta velocidade e despertou um vento lateral que levou a garoupa embora.

Subiu e subiu, na brisa suave e constante, para percorrer a cidade do alto. Primeiro o centro histórico, com seus casebres, ruelas e praças, feito uma maquete cenográfica dos anos quarenta. Depois, sobrevoou prédios iluminados e imponentes avenidas onde carros deslizavam com pressa sobre o asfalto. Assim ficou durante muito tempo, saboreando o doce gostinho da liberdade.

Entretanto, o que a garoupa de fato desejava era a imensidão do mar, e tão logo o sol começou a despontar no horizonte, foi como se os ventos ouvissem seus pensamentos, pois viu o oceano cada vez mais próximo, brilhando dourado à primeira luz da manhã. Mal continha sua ansiedade. Enfim sentiria o frescor da água e nadaria sem amarras e sem destino.

Atravessou a orla, a praia e ganhou o horizonte sem fim.

Já estava bem distante da terra quando os ventos cessaram e a garoupa começou a cair graciosamente até a superfície do mar, seu habitat, livre para sempre da ganância desmedida do mundo dos homens.

Mas, destino ou infortúnio, calhou de pousar sobre o barco de um pescador, que voltava pra casa sem peixe.





Bruno Flores conto o destino da garoupa espaço livre

AUTOR:


Bruno Flores é leitor assíduo, cinéfilo e profissional de marketing. Adora viajar pelo mundo, literalmente e pelas páginas dos livros. É autor do romance de aventura Rumah, e fundador da Espaço Livre Marketing Literário.

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