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O grito do Pinhé



Ensimesmado, montado em seu cavalo ruço, Mundim Jatobá segue pela trilha, mastigando um talo de capim-gordura.

Ao seu lado, falastrão, Deraldo Tomé cavalga um tordilho. Há meia hora descreve as riquezas do Coronel Horácio de Matos. “Duzentos capangas, só na Fazenda das Brotas de Macaúbas. Mais um mundão de terras por todo o Vale do São Francisco. E todos os fazendeiros das redondezas dizendo amém pras palavras dele. Aquilo é um homem!”.

Mundim Jatobá, macambúzio, finge escutar. Atento ao pio do nhambu, ao grito das maitacas, ao berro dos bois ao longe. Pirapora já ficou pra trás, a dois dias de caminhada. Para trás ficou Guaicuí, depois de passar o Rio das Velhas. E ainda as travessias do Jequitaí e do Mocambo.

Deraldo segue seu falar transbordado. “O homem mais corajoso que conheci, não tem cristão que enfrente. Com ele, andei até o Mato Grosso, campeando os revoltosos de Prestes. Bando de excomungados... Fiquei pra trás na altura de Coxim, um tiro no braço. Me curei na casa de uma dona. Fiquei amigado com ela por uns-par de meses. Depois enjoei, voltei pras Gerais”.

A tagarelice de Deraldo cansava, mas fazia o tempo correr. Logo logo cruzaram o Canabrava, já-já estavam em Coração de Jesus. Corrutela acanhada, meia dúzia de casas, uma capela, uma venda. Apearam para um gole de cachaça.

O vendeiro escutava um freguês já meio embriagado. “E-vem lá de Pirapora. Um cabra sem anjo da guarda. Diz que matou uma mulher em Andrequicé, no meio da madrugada. Depois, em Várzea da Palma, estripou um velho meio cambeta. Muito bem estripado, deixando o bucho pra fora... E parece que ainda uma criança em Buritizeiro. Isso é coisa do Cão. É o Cão, é o Cão que e-vem!”

O homem saiu gritando pela rua. “É o Cão! É o Cão!”. Mundim, calado, pediu mais uma dose. A januária desceu queimando a goela.

O vendeiro confirmou a história do bêbado. O povo, assombrado, trancava as portas, fazia ladainhas, recolhia a criançada.

Deraldo e Mundim seguiram com suas montarias, em marcha estradeira. Arrancharam numa clareira, perto de uns buritis. Trataram dos cavalos, estenderam as redes. Para espantar os mosquitos, Deraldo acendeu um cigarro.

No negrume da noite, além do zum dos pernilongos, a suspeita rondando. Seria ele o criminoso? Como fugir disso, agora? O rumo traçado: tinham se conhecido num armazém em Pirapora, e combinaram seguir juntos até Pedras de Maria da Cruz. Ali se apartavam: Mundim cruzava o São Francisco, passava Januária e ia no rumo da Fazenda Buriti do Alto. Deraldo continuava na margem direita, atravessava a divisa da Bahia, em demanda de Tremedal. Pousava uma semana por lá, depois campeava o cerrado, queria voltar a ser jagunço em Carinhanha.

Não podiam se separar no meio do caminho. Se ele tentasse, o outro passava fogo no ato. Se é que ele era mesmo o facínora, o que tinha partes com o Cramulhão.

Manhã seguinte, hora da jacuba: Deraldo pegou a cuia de farinha, picou a rapadura em cima, jogou água. Repartiu com o companheiro. A matraca já disparando. “Saudade do passadio dos jagunços do Coronel Horácio. Café quente, mangulão feito na hora, queijo do Serro. Não é que lá tinha de um-tudo? Eita, vida contentada! É como eu digo, o caboclo é feliz e não sabe. Por que é que fui cair no feitiço daquela mulata de Curvelo?”

Mundim calado, olhando de soslaio, pitando o cigarro de palha. Deraldo falando do assassino: “Ocê acha que ele veio mesmo pra estas bandas? Que ele pode estar em nosso rastro?”

Mundim desconversa. Melhor não falar disso. O perigo ali, junto a eles. Mira de banda, apronta os arreios do cavalo, repõe os alforjes. “Seguir viagem, companheiro. Uma cabaça de léguas até Lontra”.

Mais tensa ficava a situação, mais Deraldo falava. E contava vantagens, falava de grandezas, só não conseguia parar quieto.

E o medo rondava aqueles caminhos. Naquelas terras, matar era coisa de todo dia. Mas pactos com o Coisa-Ruim, isso era outra história. Matar pelo prazer de matar, sem motivo algum. Uma morte à traição, que chegava sem dar sinal.

Mundim Jatobá matutando. Olhava os pequizeiros no caminho, os ipês amarelando, as gameleiras altas, no meio do cerrado. O gavião-pinhé arrodeando no céu, a passarada voando apressada.

Deraldo na discurseira sem fim. Seguia na frente, cheio de energia. Aquele homem parecia tomado pelo Demo. Coisa do outro mundo.

Quando o pinhé gritou, Mundim sacou a garrucha. Mirou nas costas do companheiro. Um tiro só.

Depois, abriu a barriga do finado, e puxou as tripas para fora.

Coisa do Nem-sei-que-diga.





AUTOR:


João Bastos de Mattos, natural de Capivari-SP, é engenheiro formado pelo ITA e trabalhou por mais de 30 anos na Petrobras. É escritor diletante, tendo vencido por duas vezes o Concurso de Contos Petros.

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